No Dia de Finados, enquanto muitos homenageiam seus entes queridos em cemitérios, uma nova tecnologia emerge, prometendo redefinir nossa relação com a morte. Empresas e centros de pesquisa estão desenvolvendo ferramentas de inteligência artificial (IA) capazes de simular a presença de pessoas falecidas, permitindo interações digitais que vão desde chats de texto até videochamadas. Essa inovação levanta questões complexas sobre luto, memória e a própria definição de morte na era digital.
Diversas startups já oferecem ou experimentam com ferramentas que criam “versões digitais” de pessoas que se foram. Essas IAs são alimentadas com dados como mensagens, e-mails, vídeos e gravações de voz, utilizando essas informações para gerar respostas que imitam a personalidade e o estilo de comunicação do falecido. O “Project December”, por exemplo, permitia a criação de chatbots simulando indivíduos falecidos, enquanto a “Eternos” desenvolveu uma plataforma que replica a voz e a presença digital de uma pessoa para interação familiar após a morte.
Embora a ideia de manter um contato digital com entes queridos falecidos possa parecer reconfortante, especialistas alertam para potenciais impactos negativos. Um artigo acadêmico de 2024, “Generative Ghosts: Anticipating Benefits and Risks of AI Afterlives”, já analisa o fenômeno como inevitável, prevendo a popularização de agentes de IA para interagir com entes queridos após a morte, levantando debates sobre identidade, consciência e o significado da morte na era digital.
Pessoas enlutadas relatam que interagir com uma versão digital do ente amado oferece alívio, preenchendo parte do vazio deixado pela perda. A tecnologia também pode auxiliar na preservação de histórias e memórias familiares, permitindo o registro de entrevistas e informações valiosas para futuras gerações. Para aqueles que se aproximam da morte, a possibilidade de deixar um legado interativo pode representar uma forma de estender o impacto de suas vidas.
Contudo, especialistas alertam que o uso de IAs para “trazer de volta” os falecidos pode complicar o processo de luto e dificultar a aceitação da morte. A psicologia mostra que lidar com a ausência real é uma parte saudável do luto, e substituí-la por uma simulação pode interromper esse ciclo. Um usuário relatou: “Sei que era IA… mas quando comecei a conversar, senti que estava falando com ele.”
Questões éticas também surgem em relação à autenticidade, consentimento e potencial manipulação. Quem define se a “voz” digital realmente representa a pessoa que se foi? O consentimento prévio é frequentemente inexistente, e os perfis gerados podem distorcer ou caricaturar o falecido. A Universidade de Cambridge adverte sobre os “digital hauntings”, referindo-se à criação de versões não solicitadas de pessoas, que podem causar traumas.
A crescente mercantilização da morte também é preocupante, com serviços pagos para criar avatares e manter uma “presença digital” após a morte. Crianças em luto podem ser especialmente vulneráveis a confundir realidade e simulação, aumentando o risco de dependência emocional e dificuldades no processo de luto. Um estudo alerta sobre esse risco, ressaltando a necessidade de cuidado e orientação.
A tecnologia redefine o que entendemos por “morrer”. Se alguém pode “continuar” digitalmente, como lidamos com legado, herança e a ausência real? Há o risco de banalizar ou “artificializar” o processo de morte, transformando-o em produto ou entretenimento. Em última análise, a morte continua sendo parte integrante da vida humana – e talvez o que precisamos não seja tanto extensão digital, mas memória digna, afeto humano e a coragem de deixar ir quando for hora.



